foto de uma menina de 7 anos na birmânia, ela está vestida para seu casamento.

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quinta-feira, 17 de maio de 2012

"Dilemas da tradução e a tarefa do Tradutor."






Um dos primeiros e principais problemas que as tradições da linguística e da tradução apresentaram é expresso simbolicamente no mito da Torre de Babel. A alegoria da Torre de Babel aponta para a diversidade linguística e cultural dos diversos povos do mundo, essa diversidade é a causa da discórdia e afastamento de todo um povo que antes vivia em harmonia, é o episódio da queda, quando a coletividade se vê ameaçada incapacidade de lidar pluralidade. 


Esta condição de afastamento e estranheza revela a Raison D’Être, a razão de ser, dos tradutores, intérpretes e professores de idiomas estrangeiros. Todos esses profissionais ao longo dos milênios tem servido de ponte e filtro para esses estranhos dispostos a ir além das fronteiras de seus mundos. Por isso, creio que os profissionais e estudiosos, que se dedicam ao conhecimento de uma determinada língua e cultura, além daquela que lhes é materna, passam a viver num espaço híbrido, onde a diversidade que é constituinte de seu mundo, apresenta-se constantemente. A proposta desse breve texto e palestra é revelar questões importantes para a vida e trabalho dos tradutores, intérpretes e professores de língua estrangeira, ao observamos o lugar e movimento histórico-social de seus objetos principais de trabalho. Primeiro, a linguagem humana, e depois os Idiomas, no plural mesmo. Pergunto-me se haveria tradutores caso todos falássemos uma só língua e houvesse apenas uma única forma de expressão em todo o mundo. Se a resposta fosse afirmativa, talvez não existisse civilização.

Os Linguistas e filósofos por volta do século XI sentem-se profundamente incomodados pelos problemas que as línguas apresentam: a diversidade e a ambiguidade. Além de no plano religioso (O Mito de Babel) elas figurarem como herança do castigo aplicado por Deus contra ambição da raça humana, a diversidade é fruto do pecado. Estes estudiosos e religiosos buscavam um modelo ou uma convenção que pudesse servir como uma língua perfeita, esta seria falada por todos, funcionando como a língua universal “re-unindo” o povo de Deus. E, filosoficamente, evitaria os problemas de ambiguidade, ela, a língua perfeita, seria capaz de captar e transmitir a essência das coisas em sua forma e gramática. A diversidade de línguas era vista como um entrave para o progresso das ciências. O ofício necessário dos tradutores, e seus esforços para fazer as traduções corretas, era visto pelos filólogos e filósofos, que muitas vezes eram pessoas com ambos os ofícios, como evidência da debilidade das línguas, que chegaram a ser classificadas como primitivas ou animalescas. Assim a diversidade é igualada ao primitivismo revelando a imaturidade da erudição de certa época em lidar e compreender este riquíssimo fenômeno histórico. 

A língua que não precisasse ser traduzida seria a língua universal em que a pessoas usariam suas palavras e a comunicação seria perfeita e imediata, sem ruídos. Muitas tentativas foram feitas de criar línguas filosóficas, que pretendiam ocupar o posto de línguas universais ou interlínguas: o volapuque, o balta, o esperanto, o novo volapuque, o espelin, o esperanto reformado, o ido. A língua artificial pertenceria ao reino da razão, ela ordenaria a imperfeição das coisas, e das sociedades por consequência. A planificação busca erradicar a desordem natural do mundo, produz uma peça inteiramente construída que não conhece o desgaste e paira acima do convívio humano. Esta vocação asséptica choca-se com a noção de diversidade, que surge como um resíduo a ser eliminado. 

Mas antes mesmo que estas línguas instalassem o império da Razão no mundo, a era do Capital mudou o rumo das coisas. Com as navegações de ultramar e o mercantilismo, a revolução industrial e todo o crescente engendrar das diversas sociedades ao redor do mundo numa extensa rede de comércio e trocas culturais, ou seja, com a chegada da modernidade, a indústria e a tecnologia reorganizaram a dinâmica das sociedades e conectaram pessoas de estamentos diferentes e de sociedades diferentes. Surgiu mais uma vez a vontade de se ter uma língua universal, dessa vez deveria ser prática, para servir de cimento ao processo de globalização. Nesse momento, outros grupos de outras gerações terão o interesse em uma língua sem ambiguidades, uma língua que acompanhasse o ritmo do comércio e da expansão do Capital. Uma Língua Internacional, simples, rápida objetiva, fácil de aprender, sem muitas regras e “contra-regras” para observar, uma língua, por assim dizer, "Espartana”, lacônica. 

Nesse momento muitos procuram provar que esta ou aquela língua era a mais apta à universalidade, para isso muitos argumentos foram utilizados, os mais centrais eram: o da praticidade e objetividade em ser aprendido e comunicado, argumentos que travestiam muitas vezes a força política do etnocentrismo como o do estudioso Ogden que publicou um livro chamado Basic English em 1930 que apresentava uma versão simplificada do Inglês que poderia ser falado com 850 palavras e poucas e simples regras gramaticais. Dizia ele: “Sua estrutura era mais simples do que qualquer outra língua natural; dos idiomas existentes nenhum deles pode ser simplificado desta maneira”. Odgen e outros revelam como a modernidade representou o abandono de um vocabulário amplo em quantidade e significado, uma laconização das sociedades, a língua perde seu valor filosófico na práxis social, para ganhar um valor automato. Chegando ao ponto em que a linguagem é considerada uma faculdade comunicativa do ser humano, onde a língua é um instrumento que uma pessoa usa para comunicar objetos a outro homem. A linguagem foi reduzida pela lógica burguesa ao utilitarismo.

Com a evolução do capitalismo e com a supremacia do Reino Unido no período imperialista e depois com a supremacia do Estado Unidos após o enfraquecimento do Reino Unido no fim da Segunda Grande Guerra, o Inglês se consolida na modernidade e contemporaneidade como a língua mundial, mas não como língua universal. Consolidou-se em função do poder político e econômico dos Estados-Nação que encabeçaram este processo histórico. Derruba-se dessa forma o senso comum de que o Inglês é a língua do comércio por sua praticidade, assim como o Alemão deveria ser a língua da Filosofia (lembro-me de Caetano). O Inglês Espartano e seu domínio no mundo não é tão acidental. É na verdade uma esfera do Inglês a qual nós estamos presos pelo modo de vida moderno que temos. Existe sim um Eloquent English, mas ele foi combatido e excluído dentro do processo de globalização e mundialização que o mundo moderno engendrou.

Para isso é só pensar em como o Latim era uma língua “mundial” no auge do império romano. Até os mercadores e outros profissionais de lugares além dos domínios de Roma aprendiam o Latim para tratar dos diversos assuntos que envolvessem o mundo Romano. O Latim foi também a língua do Catolicismo porque quando este se uniu ao Estado Romano e incorporou sua língua para unir as matérias, religiosa e política, numa só a fim de fortalecer o todo da Igreja nos alicerces da herança da civilização Romana. Afinal a Igreja Católica é a grande herdeira do Império Romano, o latim não foi sua língua oficial por ser uma língua mais perto de Deus, lembremos que os romanos mataram Jesus.

De alguma forma todo esse movimento revela o problema que muitos estudiosos tiveram em entender as línguas em sua essência e para além de suas diversidades. A busca da totalidade e universalidade revelam a megalomania de transformar Razão humana em Deus. Além de desprezarem a diversidade em lugar de observá-la como um canal de compreensão da essência da língua e de sua natureza histórica. É o contraste que revela as essências. Se uma língua fosse completamente separada da outra, não haveria possibilidade de se traduzir nenhuma palavra ou signo para qualquer outro idioma. Qualquer língua no mundo e na história apresenta algo de forma singular que é também expresso em qualquer outra dentro de outra forma, essa coisa é a linguagem, é o conteúdo, a forma é a língua. Assim, Linguagem não é mera capacidade comunicativa e língua não apenas o grupo de palavras e regras.

Acredito que estar a par deste processo ajude o tradutor a ver-se livre de certas ciladas de sua profissão. No que tange ao ofício do Tradutor poderíamos evocar um pouco do pensamento de Walter Benjamin (WB). Este filósofo foge da ideia de que a tradução seria uma traição – tradutor, traidor – esta concepção é reduzida às palavras e à uma linguagem morta. A fidelidade se opõe a liberdade. 

Para WB o texto é uma forma em que algo se apresenta, uma ideia se apresenta dentro daquela forma. Cabe ao tradutor re-formar o texto, usando outros elementos que comuniquem a mesma ideia. O idioma é um produto histórico de uma cultura e civilização, por isso ele é singular, mas constitui um código capaz de produzir uma forma que transmita os sentidos e conceitos a qualquer um. 

Assim, a tarefa do Tradutor tem outra dimensão. O tradutor não deve deter-se ao domínio da equivalência dos termos. O autor precisa ser capaz de contemplar o que se comunica dentro do texto para trans-pôr, trans-formar, formar em outra língua, preservando a essência do texto. Por tanto o receptor perde sua importância, no momento que o texto é o centro de dedicação do tradutor. 

E aqui se coloca um problema. Para WB alterar a forma para satisfazer essa ou aquela demanda do receptor é mais que a traição, é a morte do conceito original presente no texto. Em respeito à obra o Tradutor deve recriá-la buscando manter sua originalidade, singularidade e totalidade. Se o conceito original é complexo isto é outra coisa. Contudo isso não significa que o Tradutor não possa buscar trazer acessibilidade ao seu novo texto, mas há aí um perigo de arruinar seu trabalho.

Observem que em WB os textos são como as obras de arte e os fenômenos históricos. Cada um deles é produzido com suas particularidades culturais e históricas. O tradutor deve ser capaz de enxergar o passado do texto através de seus fragmentos. Não é só uma pessoa que fala no texto, há uma sociedade com sua cultura e história dentro da individualidade do autor. 

O tradutor não pode impor sua natureza sobre o texto nem antecipar a natureza do mesmo, deve deixar que ela se apresente para ele, o tradutor não pode capturar ou imperar sobre o texto, deve através de seus fragmentos compreender sua essência para que o leitor possa ver dentro da outra forma a mesma essência. Nem tradutor e nem o escritor tiram a essência daqui para ali. Cada um concebe um texto que comunique um sentido, uma experiência humana, o tradutor deve ser fiel ao trabalho do escritor. Assim a tradução complementa a obra dando maior universalidade ao sentido que é comunicado fazendo com que o texto vá além das barreiras dos idiomas.

Toda essa complexa tarefa demanda do tradutor uma maturidade filosófica para a compreensão do que a linguagem humana é. Os textos demandam a capacidade de lidar com o lugar de produção deles. Palavras sem um par na outra língua. Com a perspectiva cultural que reside no texto e que foge completamente à realidade do tradutor e leitor. Além de tudo o tradutor precisa ter erudição e tê-la em todas as línguas em que traduzir. Outro problema que se coloca é o da sub-língua, várias áreas da ciência e tecnologia da sociedade desenvolveram e atualizaram seus vocabulários, dentro de uma única língua. Há toda uma produção científica a qual o texto a ser traduzido se conecta, o tradutor precisa conhecer esta rede e toda está sub-língua, bem como estar a par da tradição do conhecimento que lhe gerou. Precisa conhecer o lugar sócio-histórico do original e que lugar ocupará sua versão.

Por fim o tradutor é um profissional das minúcias, ele precisa compreender as particularidades de cada fragmento do texto para ser capaz de comunicar o mesmo sentido na forma de um novo texto sendo fiel à linguagem. Muito mais que saber emparelhar palavras o Tradutor deve ser capaz de pensar e viver autêntica experiência humana em mais de uma língua para honrar seu ofício.


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